A Angústia de Castração Revestida de Manual Red Pill

Freud apontou para consequências psíquicas das diferenças anatômicas entre os sexos. No seu seminal texto do começo do século XX, convidou a comunidade psicanalítica a avaliar seus insights, como quem estava a se perguntar: isso é coisa da minha cabeça ou as diferenças anatômicas entre os sexos provocam uma série de consequências psíquicas muito significativas na vida de cada um e na sociedade como um todo?

 

Se referia ele ao desenho que os genitais de fêmeas e machos humanos possuem e o quanto essa diferença tem influência no comportamento humano. Podemos pensar, a partir daí, que os gêneros, sejam os tradicionais cis heteronormativos: homem e mulher, sejam os contemporâneos -- que possuem toda uma complexa constelação de nomeações com as quais ainda estamos aprendendo -- são consequências e acomodações psíquicas desses desenhos anatômicos e pacotes hormonais.

***

Recentemente, em um grupo de whatsapp do qual faço parte -- onde falamos sobre as condições das ondas em Torres e arredores, discutimos política e notícias do cotidiano -- surgiu uma certa sequência de mensagens muito interessante. É um grupo majoritariamente masculino com as características predominantes em nossa cultura em que foi possível exercitar um pouco o que poderíamos chamar de divulgação do método psicanalítico. Essa sequência foi tão interessante para elucidar como o inconsciente se manifesta a partir dessas “consequências psíquicas das diferenças anatômicas”, constatadas por Freud, que eu resolvi pedir permissão para o pessoal do grupo e utilizá-las para fazer uma abordagem preliminar desse fenômeno cultural de gênero que é o “Manual Red Pill”.

A sequência de mensagens que eu acabei escolhendo se inicia com o relato de um pesadelo, o qual recebe interações de diversos membros do grupo com risadas e outras reações e tem desfecho na postagem de uma foto de uma colega de uma pintura recente que ela havia feito. Essa pintura conversa bastante com o pesadelo relatado e com o que eu gostaria de chamar de mal-estar humano diante da diferença sexual.

Vamos lá, vou situar um pouco a sequência de mensagens. Aquele que tem o posto de “presidente” do grupo relata o seu pesadelo e eu, como representante do “departamento de coisas do inconsciente” (essas nomenclaturas fazem parte da informal institucionalização do grupo) acabo fazendo algumas intervenções no sentido de aproximar o pesadelo desse tema que é a angústia de castração. Começamos o dia com o presidente revelando um pesadelo que, para sua curiosidade, guardava relações com as pautas discutidas no grupo ao longo de um dia sem ondas, que é quando todos se tornam ativos no grupo.

Essa noite que acho que fiquei impressionado com o papo de ontem sobre as origens do futebol. Sonhei que deu uma briga de trânsito: um cara deu boxe na mulher ( briga dos vizinho). Daí foi linchado pela massa. Cortaram a cabeça e começaram a chutar, meio que num espetáculo popular na esquina democrática ( debates políticos). Que loucura! Acordei suando.

Diante desse relato e, tendo em mente o evento dos red pill, movimento que eu ignorava até a véspera, quando a pôlemica começou a ser denunciada por algumas amigas que começaram a me colocar a par do ocorrido. Resolvi fazer uma intervenção no sentido de mobilizar o material do pesadelo e aproximá-lo de minha hipótese sobre o sucesso do fenômeno entre o público masculino:

[09:09, 28/02/2023] Alexandre Teles: O resto diurno é o material de sonhos e pesadelos

[09:10, 28/02/2023] Alexandre Teles: Esse medo de ter a cabeça arrancada é o que mantém muito homem solteiro

Disse isso sabendo que o nosso presidente parece evitar um pouco a vida de um relacionamento sério, monogâmico, e que é um fato com o qual volta e meia brincamos. Em sua casa não há porta no banheiro, por exemplo, coisa que costumo brincar que é um modo dele se manter solteiro. O resto diurno foi o que ele próprio já sinalizou em sua descrição do quando utilizou parênteses. Na véspera, enquanto falávamos sobre a popularidade ou elitização de alguns esportes, surge o tema da origem entre os nobres de alguns esportes, como o tennis e o futebol. Até que um membro do grupo afirmou que o futebol era jogado com a cabeça decepada de um inimigo.

Se isso confere com história do esporte ou não, não importa, mas passou a fazer parte da cena sonhada pelo nosso colega. O fato é que ele, no mesmo dia, escutou um casal de vizinhos brigando e provavelmente se angustiou com essa cena. Isso se transformou em uma cena de briga de trânsito que culmina em violência contra mulher que acaba em linchamento do agressor. Há aí a evidência que nosso sonhante condena agressões contra mulheres, ou mesmo que a reprovação pública desse tipo de agressão está presente em sua estrutura psíquica.

Outro membro do grupo se interessa pela questão do resto diurno e sua influência para os fenômenos oníricos e responde a minha afirmação sobre os sonhos

“Sempre falei isso para um amigo. Ele olhava Vikings antes de dormir e  passava tendo pesadelos”

O sonhante, a partir disso afirma:

“bah eu sonhava com a Laguerta e sua namorada... Após ela ser abandonada pelo Hagnar em detrimento daquela princesa esquisita. Laguerta, mãe de Bjorn Ironschield, filho de Hangar, que viera a ser morto pelo sem ossos, filho rejeitado pelo pai: o mais perigoso deles.

Ele manifesta ali uma certa surpresa pelo fato de Hagnar ter abandonado Lagerta, uma heroína e tanto no universo masculino. Ao que pontuo:

[09:18, 28/02/2023] Alexandre Teles: A Laguerta era perigosa

[09:19, 28/02/2023] Alexandre Teles: Talvez faça sentido pular o barco. É importante manter a cabeça no pescoço...

Outro colega que estava acompanhando a conversa dá gargalhadas, o que demonstra que a temática da angústia frente ao “perigo de perder a cabeça para as mulheres” , ou ser cortado por elas é compartilhado e o sonhante complementa:

“Bah, aquele cara que dava nela. Tomou a faca no olho!”

Isso complementa a ideia do perigo que uma mulher forte pode representar para um homem. E então o colega que havia dado uma gargalhada antes, compartilha a notícia de um jovem que havia sido assassinado, com facadas, pela namorada enquanto dormia.

Eu então faço referência a um momento do ensino de Lacan em que ele brinca fazendo de conta que está diante de uma louva-a-deus gigante e fala dos seus motivos para não estar tranquilo na oportunidade, já que o louva-a-deus é uma espécie em que a fêmea se alimenta da cabeça do macho após o coito.Foi então que ilustrei a questão com a polêmica recente das redes e perguntei se estavam por dentro:

[09:51, 28/02/2023] Alexandre Teles: Mas vcs viram a polêmica desse tal red pill?

[09:51, 28/02/2023] Alexandre Teles: Diz respeito a esse medo. O medo de ter uma parte do corpo cortada. A tal angústia de castração.

[09:52, 28/02/2023] Alexandre Teles: O cara desenvolveu toda uma técnica e inclusive trabalhou com isso, difundindo uma estratégia de lidar com o medo que as mulheres provocam nos homens.

A partir disso o grupo segue para outras pautas de surf e política até que uma colega, umas das poucas surfistas mulheres presentes no grupo, se apropria da conversa e diz:

 

“Curioso ter surgido este assunto aqui...Compartilho o resultado do último quadrinho que pintei...a representação da deusa hindu Kali”

Deusa Kali acabando com o Demônio

 

Ao que complemento,  “a angústia de castração se manifesta de diferentes maneiras, como diria o velho inventor da psicanálise”.

A deusa Kali, para essa colega, tem outra conotação. Distinta e complementar ao que a do medo que os colegas homens possuem. E isso é interessantíssimo para pensarmos as diferentes manifestações da angústia de castração e como a cultura é rica nessas representações. Se por um lado uma mulher pode representar para um homem uma restrição em suas liberdades fálicas, daí as diferentes imagens e temores de ter o seu genital castrado ou alguma parte significativa de seu corpo. Por outro lado, os homens podem ser representados para mulheres como demônios opressores a serem extirpados, cujo desfecho é libertador, tal como a imagem da deusa Kali ilustra muito bem.

Minha ideia inicial com a intervenção a partir do pesadelo do colega era de brincar um pouco com o grupo majoritariamente masculino e mobilizar esse medo que temos, bem como ilustrar como a técnica psicanalítica mobiliza o inconsciente. O relato de um pesadelo é um material importante com o qual trabalhamos. Para minha surpresa, o grupo mostrou uma sequência de associações interessantíssimas culminando na imagem de Kali com a língua ensanguentada, uma faca na mão e uma cabeça masculina em uma de suas mãos. Imagem pintada por uma mulher. O grupo segue nessas pauta, entre outras pautas do cotidiano.

Fazendo circular esse texto entre o grupo e um público maior, creio que em breve teremos uma segunda parte dessa conversa.

 

 

 

 

   

Terapia Psicanalítica e Medicação


O Jornalista Marcelo Monteiro relatou sua experiência com uma grave depressão. Seu tratamento se deu pelo uso de medicamentos associados a tratamentos espirituais. Achei uma pena o Marcelo não ter investido em uma terapia psicanalítica. Uma análise costuma proporcionar ao sujeito uma experiência de descobertas sobre si. O sofrimento que repentinamente surge do nada e incapacita a vida do sujeito aos poucos passa a ser contextualizado e a fazer parte de sua biografia. A análise convida o sujeito a reescrever sua própria história e a situar seu sofrimento em relação ao seu desejo. Ao longo dessa empreitada subjetiva, costumamos ver inibições serem superadas, angústias deixarem de ser incapacitantes e sintomas quando não totalmente removidos, poderem ser deslocados, redimensionados e passarem a ser um mal-estar administrável dentro da vida do sujeito.

Não há dúvidas que nem todo mundo está disposto a realizar uma análise. Um tratamento que consiste basicamente em falar sobre si e, especialmente, reescrever sua história e a história de seu sofrimento.

Para muitos parece mais simples, fácil e cômodo usar medicações ou se submeter a algum tratamento que “venha de fora”, por assim dizer. Aliás, essa é a forma mais comum de nos relacionarmos com a cura: ser passivo a alguém que nos dá um diagnóstico e sabe como nos curar. Temos sempre a esperança de obter um remédio que nos “dê alegria”, como dizia o eterno jovem poeta.

Em psicanálise as coisas são diferentes. A terapia psicanalítica é uma terapia independente do uso de medicações. Ser independente do uso de medicações não faz com que dispensemos seu uso ou não o recomendemos - por vezes até como condição da análise - quando necessário. Mas o fato é que há algo que uma análise oportuniza que o uso de medicamentos não pode oferecer: um tipo especial de conhecimento e um tipo especial de experiência.

Retornando à matéria de Marcelo: ele diz que o tratamento da depressão é feito à base de antidepressivos, acompanhados ou não de psicoterapia. Não quero contestar essa afirmação, apenas apresentar alguns insights psicanalíticos que podem nos ajudar a entender um pouco a origem do sofrimento psíquico, a preferência por uma cura passiva, vinda de fora, através de drogas, e a preferência por evitar uma terapia pela fala.

Muito bem, no texto de Marcelo, fica claro, já no seu título, a tentativa de enfrentar o sofrimento sozinho: “Eu enfrento a depressão”. Isso revela uma certa bravura, mas também podemos dizer que está relacionado com a própria natureza do sofrimento. Ora, o sofrimento é algo íntimo por si só. Ninguém, além de nós, é capaz de sentir aquilo que sentimos abaixo de nossa pele ou lá no fundo do peito. É claro que podemos comunicar aos outros ou dar sinais de que sofremos, mas esse é um segundo passo. Vamos agora percorrer um insight do criador da psicanálise e muito desenvolvido por um de seus seguidores. (me refiro a Freud e OttoRank, respectivamente)






Pensemos no primeiro momento de nossas vidas: saímos do útero materno e somos imediatamente forçados a nos adaptar à vida sem uma placenta e cordão umbilical. Não é à toa que não lembramos desse momento. Façamos um esforço de reconstruir essa situação comparando com situações parecidas que vivenciamos quando adultos. Estávamos envoltos em líquidos dentro do corpo de nossa mãe, quando saímos de lá provavelmente sentimos um certo desconforto. Algo parecido sentimos no inverno quando precisamos sair da cama ou quando saímos de um banho quente. De manhã cedo, logo que acordamos também experimentamos algum desconforto quando somos confrontados com alguma luz intensa. Mas, nada é tão desconfortável como a impossibilidade de respirar e tão angustiante como a tentativa de inflar os pulmões quando não se pode. Experiências de afogamento e asfixia, bem como  congestão nasal e ataques de asma parecem ser situações parecidas com a situação de um bebê recém-nascido e sua primeira tarefa: encher os pulmões para depois chorar.

Ora, quando um bebê nasce, esperamos por seu choro. É sua primeira forma de comunicação: seu sinal de vida. Aos poucos, o choro do bebê passa a ser busca por satisfação, seja de alguma necessidade fisiológica ou de alguma outra coisa.

Agora pensemos, hipoteticamente, em um bebê que está totalmente isolado de adultos. Ele chora e não é atendido. Ninguém pode ajudá-lo. Esse bebê irá desistir ou permanecerá chorando até seu último instante de vida?

Esse é um experimento mental triste de se pensar, mas nos ajuda a entender o que se passa em uma depressão e o que pode estar envolvido em não falar sobre esse tipo de sofrimento.

Se prosseguirmos no nosso exercício mental, vemos com facilidade que a fala substitui o choro. Conforme a criança cresce, ela aprende a pedir o que quer e passa a chorar cada vez menos. A partir dessa pequena história que se aplica a quase todos nós, podemos entender porque é difícil pra muita gente falar sobre o seu sofrimento: a depressão parece ser algo tão intenso como a hipotética desistência do bebê em seguir chorando até ser atendido. Seguindo essa conjectura, as drogas se mostram uma saída  ideal: um prazer que se sente no corpo advindo de fora. É como se os choros passados pudessem ser atendidos..

Fiz questão de manter a expressão geral “drogas” porque muita gente em estado depressivo também recorre a drogas que não são medicamentos. Agora, adicionando a via pela qual os medicamentos geralmente entram no corpo, progredimos ainda mais nos insights psicanalíticos: a boca é a via pela qual temos contato com o apaziguador seio materno. Seio esse que não é buscado apenas por fome: é o refúgio de conforto e satisfação do bebê.

Acredito que as linhas acima nos ajudem a entender porquê muitos optam pela via da medicação ou da droga. A fragilidade psíquica do depressivo pode ser tão regressiva a ponto de o impossibilitar de falar a respeito. Em casos assim, a análise não pode dispensar a medicação, pois a própria fala parece exigir um estado psíquica um pouco mais robusto.

   

O que nossa frágil democracia tem a aprender com Creonte?

Em releitura recente que venho fazendo da seminal Antígona, de Sófocles, acabei me atendo a algo que o personagem Creonte pode nos ensinar. Seria um ensinamento sobre o fenômeno político que vivemos.

Ensinamento que não se restringe a um dos lados da tão polarizada política brasileira, mas aos dois polos.

Creonte foi aquele que proferiu um discurso e se viu na obrigação de sustentá-lo até o fim, mesmo que isso acarretasse em prejuízos para sua família. E os prejuízos não foram pequenos. Lembremos um pouco do enredo. No começo da trama trágica, ficamos sabendo que dois irmãos se matam, ao mesmo tempo, em um conflito bélico-político. A cidade estava dividida e Creonte precisava tomar uma decisão, então declara ele - sem saber o destino trágico que o esperava - que aquele(a) que realizasse as honras fúnebres de um deles, que agora era inimigo do Estado, receberia a sentença de morte. Antígona, irmã dos dois mortos, resolve fazer as honras fúnebres do irmão, apesar da sentença de Creonte. Acontece que Antígona também era a futura nora de Creonte. Tinha seu casamento marcado com Hemon, filho de Creonte. Durante a tragédia, acompanhamos Creonte sustentar seu discurso inicial apesar dos apelos de seu filho e das advertências de seu conselheiro. Creonte acaba colhendo o suicídio do filho que não tolera a perda de Antígona.


Ficam em relevo as questões: que tipo de pai é Creonte? Que tipo de governante é Creonte?

A inflexibilidade do seu discurso é assustadoramente heróica, me atrevo a dizer, e indubitavelmente tirânica, ao mesmo tempo. Exigir de políticos ou de pais uma posição como a de um Creonte é algo demasiado e não recomendável, inclusive.  (se bem que todo pai imaginário é um pouco Creonte, diria a psicanálise. Mas isso é outro assunto...)  Porém, gostaria de abordar dois elementos que parecem estar em falta em nossa política e que, por isso, especulo eu, nossa política esteja em tão profunda crise de credibilidade e representatividade.

Destaco um pequeno elemento de cada um dos lados da nossa frágil democracia: por um lado, os deputados defensores do impeachment proliferaram inúmeras justificativas em nome de suas famílias e das divindades nas quais acreditam. Ora, Creonte nos ensina que um político tem que fazer suas escolhas apesar de sua família e de suas crenças. Talvez, em um nível radical isso seja utópico, mas quando assim declarado como foi, fica escancarada a falta de espírito republicano em nossos políticos.

Por outro lado, a presidente Dilma cai não simplesmente por suas pedaladas fiscais, mas principalmente por ter um governo extremamente impopular. E qual seria a causa disso? Ora, talvez seja múltipla, mas me arrisco a apostar minhas fichas no que eu gostaria de chamar aqui de demasiada flexibilidade do discurso do governante. Isso não é coisa exclusiva de Dilma ou do PT, mas pela história da sigla, o fenômeno deu no que deu.

Esse fenômeno é gradativo no PT desde o primeiro governo de Lula e teve uma acentuação brusca desde a última eleição de Dilma. Me explico: o PT tinha um discurso bem caracterísitico. Radical até. Era o partido dos trabalhadores! Não estava envolto em escândalos como os outros. Mudou com o tempo. Passou a se parecer mais com os outros, mas uma fala parece ser emblemática para a queda de popularidade de Dilma que culminou no impeachment: "no meu governo não subirei impostos nem que a vaca tussa!". Naquele momento, de forma surpreendente, Dilma falou a voz do povo. Ela, diferentemente de Lula, não era hábil nisso. Deu um recado bastante claro para todos. E, ao fazer isso, se colocava como distinta de seu adversário: Aécio Neves. No entanto, ao fazer isso, Dilma flexibilizou demasiadamente seu discurso. Com a eleição ganha, foi necessário fazer os tais ajustes fiscais. Daí, a vaca tussiu. Será que foi pro brejo?

Talvez seja o momento de o PT fazer uma correção de curso, voltar para suas bases e passar a exercer um papel em falta no páis: o de uma esquerda forte e genuína.

   

O vazio e a busca por sentido

 

Roland Chemama, em seu livro A psicanálise como Ética, traz a baila o que considera uma novidade de nossos tempos. Uma nova modalidade de depressão. Algo que seria uma espécie de adendo à extensa lista freudiana em Mal Estar na Civilização. Diferentemente dos tempos de Freud, o sujeito contemporâneo, diante de um quadro geral de decadência das referências morais que orientam a cultura, precisa erigir para si mesmo suas referências metafísico-culturais. Como resultado, teríamos uma forma de depressão que não seria resultante de um conflito entre um supereu rigoroso e as pulsões, mas um sentimento de insuficiência do eu em relação ao ideal do eu.

Erigir para si mesmo suas próprias referências é uma tarefa heroica. Talvez comparável a de personagens trágicos tais como Antígona e o próprio Édipo. Personagens que, como destaca Lacan ao final do Seminário A Ética da Psicanálise, se defrontaram com o “puro desejo de morte” a ponto de proclamarem sentenças tais como: “já estou morta” – no caso de Antígona – ou “preferia não ser” – no caso de Édipo.

Parece que essa peculiaridade destacada por Chemama no sujeito contemporâneo, em alguma medida, está presente em todo neurótico na medida em que cada sujeito conserva em si uma dimensão alheia e anterior a todo interdito. Dimensão essa que fica nítida nos personagens trágicos. Ora, o fato é que por mais que interditos e referências culturais sejam recebidas, todo sujeito se confronta com a ausência de sentido.

Conferir sentido à vida – coisa que se confunde com a busca por felicidade – e barrar a destrutividade humana são tarefas essenciais da cultura e da civilização, segundo Freud. Ora, não seria aquela uma tarefa equiparável à do oleiro que acaba criando um vazio quando constrói um vaso? A destrutividade a ser barrada por um “ama ao próximo como a si mesmo” não seria também, além da que se dirige ao próximo, aquela dirigida a si? Frente a um vazio ainda sem contornos, essa destrutividade não assumiria a forma de uma depressão? A relação peculiar dos heróis trágicos com os interditos morais pode nos instruir para pensar o mal estar do sujeito contemporâneo?

 


Vaso de boca oval, proveniência: Gruta de Santiago do Escoural. Montemor-o-Novo, cronologia: Neolítico Médio, vaso em cerâmica com revestimento da pasta a almagre vermelho, dimensão: 8 por 12,5 cm, nº de inventário: 2004.135.1, disponível em: http://www.museuarqueologia.pt/?a=3&x=3&i=194

 

   

O lado sombrio da força


O bem e o mal estão mais uma vez em luta na interminável série de sucessos de bilheteria que é Star Wars. Por que essa guerra nas estrelas faz tanto sucesso? Será que é porque há algo do universo humano que sua trama é capaz de captar?

Certamente sim, assim como qualquer grande sucesso de bilheteria ou de aclamação popular sob a forma de audiência ou de alto índice de likes e compartilhamentos.

Nos concentremos em um elemento essencial a essa trama e vejamos o que de mais caro do universo humano ali está presente. Star Wars é uma obra de ficção que contém em si uma metafísica na forma de uma visão de mundo mística e secular: há a luz e a sombra. Os dois lados da força!

Quem não ficou intrigado com o parricídio cometido pelo neto de Darth Vader, que acabou por incorporar suas insígnias de vilão? O jovem filho de Han Solo e da princesa Léia foi seduzido pelo lado sombrio da força e lá se abrigou. Mas o que mesmo o teria seduzido?

Suspeito que o jovem, sobrinho do herói Luke, não quis esperar a morte natural do tio para poder empunhar um sabre de luz. Não podendo empunhar o azul, o que defende a luz, o bom lado da força, motivado por inveja e ganância, se voltou para o lado sombrio da força e passou a ser aquele que porta o sabre vermelho, tão poderoso quanto o azul.

O modo como o filho de Han Solo se voltou para o lado sombrio da força não nos é mostrado, por isso precisamos especular. O que nos é mostrado é um parricídio repugnante. Um filho que mata o pai de uma forma traidora, covarde e vil. Isso faz parte da construção de um vilão. Talvez esse jovem vilão consiga provocar tantas emoções como Darth Vader foi capaz de fazer. Mas por que precisamos de vilões? Por que o mal precisa combater o bem em igualdade de forças, mesmo que no final ele acabe sendo derrotado? Por que o parricídio é algo tão repugnante? Por que é preciso deixar o mal escondido, nas sombras e deixar o bem iluminado, visível (na luz!)?

O vocabulário da trama se modificou um pouco pela questão do politicamente correto, mas a dicotomia permanece: o lado mau, antigamente chamado de negro, é chamado de sombrio. Algo que precisa ser escondido, tapado. Assim como o próprio rosto do vilão, que acaba recebendo uma máscara. Será que não há um lado sombrio em todos nós que precisamos esconder de nós mesmos? Parece que a trama dessa guerra nas estrelas faz tanto sucesso por encenar uma trama interna que todos nós vivenciamos desde muito cedo em nossas vidas. Por mais que tenhamos alguma raiva ou ódio de um ente querido, somos estimulados a esconder esses sentimentos hostis e transformá-los em sentimentos benevolentes. Fazer preponderar o bem, e deixá-lo visível, escondendo todo o mal parece ser a regra principal que a sociedade nos impõe. Isso por certo demanda um trabalho interno, quase uma guerra. Por vezes nos deparamos com um ou outro efeito colateral dessa guerra, mas não vamos falar aqui de culpa ou de depressão. Basta destacar que o sucesso das telas de cinema conta uma história muito antiga vivida dentro de todos nós.

   

Página 1 de 2